Dominar o verbo vai muito além do que é ensinado na escola.
Aliás, talvez não demos o devido valor a ele por ser mais um assunto entre tantos que aprendemos.
Porém as palavras desta categoria transcendem sua classe gramatical e guiam todo o texto como catalisadoras do potencial de quem escreve.
Veja neste artigo por que é tão importante dominar o verbo e como fazê-lo.
No princípio era o verbo
Permitam-me uma citação de um livro religioso, mas que faz todo o sentido para escritores (independente da sua religião).
O livro de João 1:1-3 traz um dos trechos mais belos da Bíblia do ponto de vista literário. Veja só:
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito foi feito sem ele.”
Muitas tradições de origem judaico-cristãs vêm aqui o verbo (ou “a Palavra” em outras traduções da Bíblia) como um segundo deus, que teria criado o nosso mundo por ordem do primeiro. Mesmo os egípcios acreditam em algo parecido (se houver interesse, consultar o Corpus hermeticum, de Hermes Trismegisto).
Obviamente, não entraremos no mérito da discussão teológica, pois não é o propósito do artigo.
Contudo, esta ideia nos permite a transposição de uma imagem.
O verbo gera ação e criação por ordem do escritor, tornando-se o deus da frase.
É por isso que não se brinca com o verbo, mas se procura a palavra exata que a frase precisa. Quase nunca, a primeira que vem à mente.
Do mesmo modo, frases com verbos fracos raramente têm algo de relevante a dizer. É como se houvesse uma simbiose do poder de quem escreve em utilizar os verbos conforme a força do que se tem a dizer, mesmo que não se tenha consciência disso.
No entanto, quando isso não acontece naturalmente, há algo que se pode fazer. O que nos leva ao próximo tópico.
Na revisão se cura o verbo
Há alguns verbos no português que costumo chamar de “gastos”.
De tanto serem utilizados, acabam ficando repetitivos e pouco ou nenhum efeito causam no leitor ao lê-los. São como aquele caminho que, por passarmos todos os dias por ele, já não notamos seus detalhes.
Eis o chamado do escritor: capturar o leitor pelas palavras.
Porém muitos escritores iniciantes parecem não lembrar disso ou, pior, sequer sabem a respeito. Como citei acima, escrevem a primeira palavra que passam pela cabeça como se tentassem assentar tijolos com um martelo.
Mesmo os experientes se permitem nas primeiras versões dos seus textos relaxarem com os verbos, visando apenas despejarem a história no papel. Contudo, na revisão, procuram “curar o verbo”. Ou seja, encontrar as palavras exatas para o que querem dizer. E é isso que distingue os grandes dos pequenos, os experientes dos iniciantes.
Afinal, o escritor é um artesão do texto, que ajusta até encontrar a forma ideal para a mensagem que deseja revelar.
Ok, mas como lidar com os tais verbos? Vejamos!
Quais são os verbos mais gastos do português e como lidar com eles?
Pela técnica da Escrita Perigosa, a lista seria bem mais extensa, mas vou me ater a quatro deles:
- Tinha;
- Estava;
- Podia/poderia;
- Sentia.
Seja em textos em primeira ou em terceira pessoa, na maioria dos escritores, encontra-se uma profusão de repetições destas palavras.
Caso a narração seja no presente, apenas se muda o tempo verbal:
- Tem;
- Está;
- Pode;
- Sente.
Veja bem, não estou criando um dogma que proíbe a utilização destas palavras. Elas fazem parte do nosso idioma e têm um valor textual imenso. Contudo, a repetição à exaustão que se vê em certos textos, torna-as banais. Demonstra certa preguiça do escritor.
Porque o escritor dedicado à arte da escrita buscará modular os verbos do texto até extrair o máximo dele. Tal qual os exímios escritores da nossa língua.
Quer um exemplo?
Um excerto de um grande mestre
Veja abaixo um trecho do conto Um cinturão, de Graciliano Ramos, presente no livro Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi. Tente preencher com os verbos que você utilizaria:
“[…] O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a _____________-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a _____________ uma interrogação incompreensível.”
E então, como foi? Quais palavras usou? Cedeu à tentação de utilizar as primeiras que vieram à mente?
Escolhi uma frase de Graciliano Ramos, pois ele é um escritor que prioriza a prosa direta e a economia de palavras.
Vejamos então como ele fez:
“O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.”
Simples e único! Eis a habilidade desenvolvida do escritor dedicado.
Fica o desafio: verificar todos os verbos gastos do seu texto e procurar ao máximo substituí-los por variações.
Dominar o verbo é uma das grandes artes do escritor
Tudo é feito pelo verbo.
É a palavra sagrada da qual todo escritor deve fazer uso com prudência e equilíbrio.
Neste sentido, ferramentas como o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa ou o site Dicionário de Sinônimos podem ser aliados no artesanato da escrita. Recomendo o uso.
No mais, só o tempo e a prática dão resultados, assim como a leitura e o estudo de cursos para escritores.
Para finalizar, desejo que o verbo escrever esteja sempre com você!