Criação de personagens às vezes parece algo meio místico, assim como todo o processo criativo. Quase como se o artista estivesse psicografando.
No entanto, a verdade é que pode ser bem mais simples do que parece.
Com um bom método, você pode sair do zero e, em poucos minutos, ter um personagem profundo e verossímil.
Continue lendo este artigo para saber o que é um personagem e como desenvolvê-lo seguindo um roteiro de quatro passos simples para a criação de personagens.
O que é um personagem?
Esta é a pergunta de um milhão de dólares na ficção.
Há quem diga que é só um conjunto de palavras (até falei sobre isso em aula), mas de que modo um conjunto de palavras poderia nos envolver, emocionar e nos levar a julgá-lo, condenando ou absolvendo-o?
Em Como funciona a ficção, James Wood pontua:
“[…] coisas que se podem dizer sobre as pessoas também podem ser ditas sobre eles. Todos são “reais” (têm uma realidade), mas de modos diferentes.”
Mas como essa realidade opera dentro da narrativa?
A meu ver, funciona quase como a crença que algumas pessoas têm no destino. Tudo acontece por um motivo, ao menos na ficção. Se um personagem pisa numa flor no início da história, lá na frente, ele irá descobrir que a flor era o remédio que ele precisava para curar seu filho de uma doença mortal. Mais ainda, estes eventos que ocorrem iluminam certas facetas do personagem, fazendo com que ele aja e reaja conforme a história.
Tal princípio de causa e consequência é apontado por Henry James na teoria da iluminação do personagem:
“O que é um personagem se não a determinação de um incidente? E o que é um incidente se não a iluminação do personagem?”
Logo, um personagem é um conjunto de ideias que ganha força de realidade e nos envolve emocionalmente conforme vão se desencadeando os eventos da narrativa.
Vejamos então como criar um desses a seguir.
4 Passos simples e fáceis para criação de personagens
Há inúmeros esquemas de criação de personagens que você encontra aos montes pela internet, oficinas literárias e manuais de escrita criativa.
O que vou propor aqui é um esquema minimalista de criação de personagens.
Pela minha experiência de mais de 10 anos ativamente envolvido com escrita literária, a maioria das pessoas que desenvolvem longas biografias para seus personagens sequer as consultam quando estão redigindo seus textos de ficção. Então me perguntei há uns anos atrás: por que perder tanto tempo desenvolvendo personagens se você não irá usar este conteúdo?
Por causa disso, busquei desenvolver um jeito próprio de criar personagens, seguindo 4 passos.
Abaixo você confere cada um deles:
1) As características dominantes Versus a característica contraditória
A primeira pessoa que vi falar a respeito das características dominantes foi o escritor Leonel Caldela — se não me engano, em um texto da Revista Dragão Brasil. Não sei se ele é o criador deste conceito, mas não duvido.
Basicamente, o que você irá fazer é escolher três características dominantes para o seu personagem e uma contraditória.
Por exemplo:
Jorge é autoritário, teimoso e desbocado, mas é um grande filantropo.
Toda a construção do personagem gira em torno dessas características dominantes, embora ele possua este tom contrastante que faz com que a personalidade dele se torne real.
Convenhamos, nenhum ser humano possui só três características, mas vale a pena você desenvolver todo um espectro de cem características se durante a narrativa tudo vai girar em torno de poucas delas?
Além disso, este uso da característica contraditória possibilita que o personagem ganhe profundidade e verossimilhança. Afinal, nós seres humanos não somos totalmente maus ou bons. Mesmo as piores pessoas têm um lado bom, e as melhores podem ter um cadáver no armário (espero que não literalmente).
Vou deixar mais alguns exemplos:
Sheila é sentimental, dedicada e empática, mas é ciumenta.
Gui é determinado, estudioso e tem facilidade com números, mas é ingênuo para o amor.
Ana Maria é pragmática, maquiavélica e grosseira, mas é uma defensora dos animais.
Depois de definir as características dominantes e a contraditória do seu personagem, vá para o passo seguinte.
2) Objetivo: o que seu personagem quer?
“Todos os personagens devem querer algo, mesmo que seja só um copo d’água.”
Esta frase de Kurt Vonnegut — um grande escritor americano de ficção científica — é citada e recitada em muitas oficinas literárias. E faz todo sentido.
Se o personagem não quer nada, como podem surgir os obstáculos entre ele e seu objetivo (os conflitos) para que tenhamos história?
O querer do personagem é a própria alma da ficção.
Digamos que você seja daquele time que afirma querer criar “uma história como na vida, onde nada acontece”.
Minha primeira dica para você é assistir ao filme Adaptation (2002), dirigido por Spike Jonze. O personagem principal é interpretado por Nicolas Cage, sendo um roteirista de cinema que precisa escrever a adaptação de um grande livro literário. O problema é que o personagem tem essa exata crença de que nas boas histórias nada acontece. Após se ver defronte a um bloqueio criativo, ele resolve ir a uma das famosas oficinas de Robert McKee. Se eu contar mais, vou estragar esta icônica cena. Acho melhor que vocês mesmos a vejam no link abaixo:
Portanto, neste passo, você deve definir o que seu personagem quer.
E ele tem que querer alguma coisa!
3) Motivação: por que seu personagem quer o que quer?
Não basta querer. É preciso que você saiba por que seu personagem quer o que ele quer.
Ou seja, é preciso que o personagem tenha uma motivação definida. Embora não necessariamente essa motivação precise ser apresentada ao leitor desde o início.
Digamos que seu personagem queira comprar um litro de leite. Este é o objetivo dele. Podemos montar toda uma história em cima disso. No entanto, se não soubermos por que ele tem este objetivo, a história será fraca. Faltará a motivação, que funciona como um motor que impulsiona a história adiante. Ou, talvez, como o próprio combustível.
Em nosso exemplo, o personagem que deseja comprar um litro de leite pode ser motivado pelo pedido do pai. Seu velho está nas últimas e pede ao único filho, por quem lutou e ajudou toda a vida, que lhe traga um pouco de leite. Há uma greve nas empresas que vendem o produto, portanto este se encontra em falta nos mercados. O rapaz, que se comprometeu com o pai, empreenderá uma verdadeira jornada. Ele tem um objetivo = comprar leite. E uma motivação = realizar o último desejo do pai.
Somemos a isso as características dominantes e a contraditória e quase temos um personagem.
Quase porque nos faltam elementos do passado dele.
4) Linha do tempo da vida do personagem — de 3 a 5 eventos
Acalme-se, neste quarto passo, não vamos fazer longas páginas de biografia dos personagens.
Vamos apenas desenvolver o que usaremos. Ou seja, o que você deve se perguntar é quais eventos na vida deste personagem ajudaram a formar quem ele é hoje — no momento em que se passa a história.
Recomendo que não sejam mais do que cinco eventos. De três a cinco. Somente o que for necessário para justificar o comportamento do personagem e que possa ser utilizado como elementos complicadores da trama.
É o suficiente. Não se empolgue gastando seu precioso tempo com o que não será necessário.
E pronto, seguindo esses quatro passos básicos, você terá personagens profundos para contar uma história.
Considerações finais sobre criação de personagens
Para muita gente, criar personagens é algo difícil. Para outros, é a parte fácil, enquanto a produção de uma trama envolvente é um pesadelo. Afinal, há escritores que começam por personagens e outros que iniciam por situações, como tratei neste vídeo.
Mas com este roteiro que apresentei no artigo a criação de personagens fica muito mais fácil.
Basta estabelecer as características dominantes e a contraditória, o objetivo, a motivação e a linha do tempo, contendo de três a cinco eventos significativos, e tudo estará resolvido.
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o que você achou deste conteúdo?
Minha nossa, eu amei suas dicas. De verdade, lendo esses passos me deu até mais ideia para o meu livro. Obrigada!
Fico feliz. Boa escrita!
Esse conteúdo é brilhante, e me ajudou a melhorar os personagens do meu roteiro.
Fico feliz, Roseli. Posso dizer que se trata da compactação de anos de estudo 🙂
Muito bom. Com certeza vou usar em algum roteiro que eu bolar por aqui.
É isso aí, Celso!
Obrigada você não sabe o bem que me fez estou criando um livro de ficção mas não fazia idéia de como terminar de construir o personagem principal
Fico feliz que tenha sido útil!
Muito interessante!!! Obrigadíssímo
Obrigado, João!
Gostei muito…sucinto e inspirador
parabéns!
Que bom que gostou, Maria. Agora é colocar em prática.
Clareza e objetividade. Grata pelas dicas, um bom suporte para criar estrutura.
Obrigado pelo feedback! Fico feliz que tenha achado útil. Se tiver mais dúvidas ou precisar de mais orientações, estou à disposição. Boa escrita!