Nota: o artigo apresenta uma visão de Maureen Murdock sobre a Jornada da Heroína. A intenção do autor deste site é expor a teoria do modelo arquetípico feminino desenvolvido pela autora.
***
A jornada do herói
Em 1949, Joseph Campbell apresentou um modelo da jornada mitológica do herói em O herói de mil faces, que desde então tem sido usado como modelo para o desenvolvimento psicoespiritual do indivíduo.
Este modelo, rico em mitos sobre as angústias e recompensas de heróis masculinos como Gilgamesh, Ulisses e Percival, começa com um chamado à aventura.
O herói cruza o limiar para reinos desconhecidos, encontra guias sobrenaturais que o auxiliam em sua jornada e confronta adversários ou guardiões do limiar que tentam bloquear seu progresso. Então ele experimenta uma iniciação na barriga da baleia, passa por uma série de testes que testam suas habilidades e se resolve antes de encontrar a bênção que procura.
Esta benção é simbolizada de várias maneiras, como: o Graal, a Runa da Sabedoria ou o Velocino de Ouro.
A jornada do herói é uma busca pela alma e é narrada em mitologias e contos de fadas em todo o mundo.
Esse motivo de busca, entretanto, não aborda a arquetípica jornada da heroína.
O surgimento da jornada da heroína
Em 1990, Maureen Murdock publicou A jornada da heroína: A busca da mulher para se reconectar com o feminino como uma resposta ao modelo de Joseph Campbell.
Murdock, uma estudante do trabalho de Campbell, apontou que o modelo dele falhou em abordar a jornada psicoespiritual específica das mulheres contemporâneas.
Ela desenvolveu um modelo que descreve a natureza cíclica da experiência feminina.
A resposta de Campbell ao seu modelo foi:
“As mulheres não precisam fazer a jornada. Em toda a tradição mitológica, a mulher está lá. Tudo o que ela precisa fazer é perceber que ela é o lugar que as pessoas estão tentando chegar”(Campbell, 1981).
Isso pode ser verdade mitologicamente, pois o herói ou heroína busca iluminação, mas psicologicamente, a jornada da heroína contemporânea envolve diferentes estágios.
Como funciona a jornada da heroína
1) Separação do feminino
A jornada da heroína começa com uma separação inicial dos valores femininos, buscando reconhecimento e sucesso em uma cultura patriarcal, experimentando a morte espiritual e voltando-se para dentro para recuperar o poder e o espírito do sagrado feminino.
Os estágios finais envolvem um reconhecimento da união e do poder de nossa natureza dual para o benefício de toda a humanidade.
Baseando-se em mitos culturais, Murdock ilustra um modelo de jornada alternativa ao da hegemonia patriarcal. Tal modelo se tornou referência para romancistas e roteiristas, iluminando a literatura feminista do século XX.
2) Identificação com o masculino
A Jornada da Heroína é baseada na experiência das filhas de pais que idealizaram, identificaram-se e se aliaram intimamente a seus pais ou à cultura masculina dominante.
Isso vem ao custo de desvalorizar suas mães e denegrir os valores da cultura feminina. Isso ocorre tanto para homens quanto para mulheres, se não em um nível pessoal, então certamente em um nível coletivo.
Se o feminino é visto como negativo, impotente ou manipulador, a criança pode rejeitar as qualidades que associa ao feminino, incluindo qualidades positivas como nutrição, intuição, expressividade emocional, criatividade e espiritualidade.
Em um nível cultural, os deuses e deusas são frequentemente vistos como formas diversas de estar no mundo e a antiga deusa Atena simboliza o segundo estágio da Jornada da Heroína. Esta deusa grega da civilização nasceu da cabeça de seu pai, Zeus. Sua mãe, Metis, foi engolida inteira por Zeus, privando assim Atenas de um relacionamento com sua mãe. Este estágio envolve uma identificação com o masculino, mas não a masculinidade pessoal interna. Em vez disso, é o masculino patriarcal exterior cuja força motriz é o poder. Um indivíduo em uma sociedade patriarcal é levado a buscar o controle sobre si mesmo e os outros em um desejo desumano de perfeição.
A jovem pode ver os homens e o mundo masculino como adultos e se tornar identificada com sua voz masculina interior, seja ela a voz de seu pai, deus pai, o estabelecimento profissional ou a igreja. Infelizmente, a consciência masculina freqüentemente tenta ajudar o feminino a falar; ele pula, interrompe e assume o controle, não esperando que seu corpo saiba sua verdade.
3) Estrada das provações
O próximo estágio, como a jornada do herói, é a Estrada das Provações, onde o foco está nas tarefas necessárias para o desenvolvimento do ego.
No mundo exterior, a heroína passa pelos mesmos obstáculos que o herói para alcançar o sucesso. Tudo é voltado para subir a escada acadêmica ou corporativa, alcançar prestígio, posição e patrimônio financeiro, e sentir-se poderoso no mundo.
No entanto, no mundo interior, sua tarefa envolve superar os mitos da dependência, inferioridade feminina ou pensamento deficitário e amor romântico. Muitas mulheres foram encorajadas a serem dependentes, a desconsiderar suas necessidades de amor de outra pessoa, a proteger outra pessoa de seu sucesso e autonomia.
Vivemos em uma sociedade dominada por uma perspectiva masculina, onde o feminino é percebido como menor queo que o masculino. A Língua Materna, a linguagem da experiência e do saber corporal, não é tão válida quanto a Língua Paterna, a linguagem da análise.
Em algumas famílias, culturas e religiões, nascer em um corpo feminino é de segunda categoria. A criança do sexo feminino, portanto, fracassou desde o início e é psicologicamente marcada como inferior apenas por causa de seu gênero.
Neste século, a principal questão moral, dos países do terceiro mundo às principais potências mundiais, é o abuso e a opressão de mulheres e meninas em todo o mundo.
O mito do amor romântico é que o outro completará sua vida, seja o outro marido, amante, filho, ideologia, partido político ou seita espiritual. A atitude aqui é que o “outro” atualizará seu destino. Este estágio é simbolizado pelo mito de Eros e Psiquê.
4) Encontrando o Apogeu do sucesso e 5) Aridez Espiritual
A primeira parte da jornada da heroína é impulsionada pela mente e a segunda parte é em resposta ao coração.
A heroína tem trabalhado nas tarefas de desenvolvimento necessárias para ser adulta, para se individualizar de seus pais e para estabelecer sua identidade no mundo exterior. No entanto, embora tenha alcançado seus objetivos conquistados com dificuldade, ela pode experimentar uma sensação de aridez espiritual.
Seu rio de criatividade secou e ela começa a perguntar: “O que eu perdi nesta busca heróica?”
Ela alcançou tudo o que se propôs a fazer, mas com grande sacrifício para sua alma. Seu relacionamento com seu mundo interior é estranho. Ela se sente oprimida, mas não entende a fonte de sua vitimização.
Neste estágio, ela tem medo de olhar para as profundezas de si mesma e, em vez disso, se apega a padrões de comportamento passados, relacionamentos antigos e um estilo de vida familiar. Há o medo de dizer “não” e segurar a tensão de não saber o que vem a seguir.
Em Leaving My Father’s House, a analista junguiana Marion Woodman (1992) escreve:
“É preciso um ego forte para segurar a escuridão, esperar, segurar a tensão, esperar não sabemos o quê. Mas se pudermos aguentar o tempo suficiente, uma minúscula luz é concebida no inconsciente escuro, e se pudermos esperar e aguentar, em seu próprio tempo ela nascerá em seu brilho total. O ego então tem que ser amoroso o suficiente para receber o presente e nutri-lo com o melhor alimento para que uma nova vida possa eventualmente transformar toda a personalidade ”(p. 115).
6) Iniciação e Descida para a Deusa
Neste ponto, a heroína se depara com uma Descida ou noite escura da alma, um momento de grande desestruturação e desmembramento.
Uma descida traz tristeza, dor, uma sensação de estar fora de foco e sem direção. O que geralmente leva uma pessoa a uma queda é a saída de casa, a separação dos pais, a morte de um filho, amante ou cônjuge, a perda de identidade com um papel específico, uma doença física ou mental grave, um vício, a transição da meia-idade, divórcio, envelhecimento ou perda da comunidade.
A descida pode levar semanas, meses, anos e não pode ser apressada porque a heroína está reivindicando não apenas partes de si mesma, mas também a alma perdida da cultura. A tarefa aqui é recuperar as partes descartadas do self que foram cindidas na separação original do feminino — partes que foram ignoradas, desvalorizadas e reprimidas,
O desmembramento e a renovação são uma característica fundamental do antigo mito sumério de Inanna e Ereshkigal.
Inanna, a Rainha do Grande Acima, viaja ao Mundo Inferior para ficar com sua irmã Ereshkigal, a Rainha do Grande Abaixo. O consorte de Ereshkigal morreu e Inanna atravessa sete limiares e sete portões para estar com sua irmã em sua dor.
Em cada portão, ela se despoja dos símbolos de seu poder. Quando ela chega ao Submundo, Ereshkigal a fixa com o olho da morte e a pendura em uma estaca para apodrecer. Inanna se sacrifica pelas necessidades da terra por vida e renovação. Sua morte e subsequente retorno à vida são anteriores à crucificação e ressurreição de Jesus Cristo em três mil anos.
7) Anseio urgente de reconexão com o feminino
Neste estágio da jornada da heroína, a mulher busca recuperar uma conexão com o sagrado feminino para entender melhor sua própria psique.
Ela pode se envolver em pesquisas sobre antigas figuras de deusas, como Inanna, Ereshkigal, Deméter, Perséfone, Kali ou os mistérios marianos.
8) Curando o Rompimento entre mãe e filha
Há um desejo urgente de se reconectar com o feminino e de curar a divisão mãe/filha que ocorreu com a rejeição inicial do feminino. Isso pode ou não envolver uma cura com a mãe ou filha pessoal de alguém, mas geralmente envolve o luto pela separação do feminino e a recuperação de uma conexão com a sabedoria corporal, intuição e criatividade.
9) Curar o Masculino Ferido
O próximo estágio envolve a cura dos aspectos não-relacionados ou feridos de sua natureza masculina, enquanto a heroína retira suas projeções negativas sobre os homens em sua vida.
Isso envolve identificar as partes de si mesma que ignoraram sua saúde e seus sentimentos, recusaram-se a aceitar seus limites, disseram-lhe para resistir e nunca a deixaram descansar.
Também envolve tomar consciência dos aspectos positivos de sua natureza masculina que apoiam seu desejo de concretizar suas imagens, ajudam-na a falar sua verdade e a reconhecer sua autoridade.
10) Integração do masculino com o feminino
O estágio final da jornada da heroína é o casamento sagrado do masculino e do feminino, o hieros gamos.
A mulher se lembra de sua verdadeira natureza e se aceita como ela é, integrando os dois aspectos de sua natureza. É um momento de reconhecimento, uma espécie de lembrança daquilo que em algum lugar no fundo ela sempre conheceu.
Os problemas atuais não são resolvidos, os conflitos permanecem, mas o sofrimento, enquanto ela não fugir, levará a uma nova vida. Ao desenvolver uma nova consciência feminina, ela precisa ter uma consciência masculina igualmente forte para fazer sua voz sair para o mundo. A união do masculino com o feminino envolve reconhecer as feridas, abençoá-las e deixá-las ir.
Considerações finais
A heroína deve se tornar uma guerreira espiritual. Isso exige que ela aprenda a delicada arte do equilíbrio e tenha paciência para a integração lenta e sutil dos aspectos feminino e masculino de sua natureza.
Ela primeiro tem fome de perder seu eu feminino e fundir-se com o masculino e, uma vez que tenha feito isso, ela começa a perceber que isso não é a resposta nem o objetivo. Ela não deve descartar nem desistir do que aprendeu ao longo de sua jornada heróica, mas ver suas habilidades e sucessos conquistados com dificuldade, não tanto como o objetivo, mas como uma parte de toda a jornada. Esse foco na integração e na consciência resultante da interdependência é necessário para cada um de nós neste momento, enquanto trabalhamos juntos para preservar a saúde e o equilíbrio da vida na terra.
Na História da Criação Navajo, a Mulher Transformadora fala com seu consorte, o Sol:
“Lembre-se, por mais diferentes que sejamos, você e eu, somos um só espírito. Por mais diferentes que sejamos, você e eu, temos o mesmo valor. Por mais diferentes que você e eu sejamos, sempre deve haver solidariedade entre nós dois. Diferentes um do outro como você e eu somos, não pode haver harmonia no universo enquanto não houver harmonia entre nós ”(Zolbrod, 1984, p. 275).
Recomenda-se a leitura do livro A jornada da heroína: A busca da mulher para se reconectar com o feminino, de Maureen Murdock, para ir mais a fundo no assunto.
Bibliografia
- Campbell, J. (1949). The hero with a thousand faces. Princeton, NJ: Princeton UP.
- Campbell, J. interview with author, New York, 15 September 1981.
- Murdock, M. (1998). The heroine’s journey workbook. Boston: Shambhala Pub.
- Murdock, M. (1990). The heroine’s journey: Woman’s quest for wholeness. Boston: Shambhala Pub.
- Woodman, M. (1992). Leaving my father’s house: A journey to conscious femininity. Boston: Shambhala Pub.
- Zolbrod, P. G. (1984). Dine bahane: The Navaho creation story. Albuquerque: U of New Mexico P.
* Publicado originalmente no site de Maureen Murdock, com tradução livre deste site.
Me conte!
o que você achou deste conteúdo?
Excelente!
Agradeço, Nelson.
Perfeito! Gratidão!!!🤩
Aproveite 🙂